O nascimento de Afrodite
- Por Seganfredo e A. S. Franchini
- 18 de jan. de 2016
- 4 min de leitura

A véspera do nascimento de Afrodite fora um dia violento. O firmamento, tingindo-se subitamente de um vermelho vítreo, enchera de espanto toda a Criação. Crono, munido de sua foice, enfrentara o próprio pai Urano, num embate cruel pelo poder do Universo Com um golpe certeiro, o jovem deus arrancara fora a genitália do pai, tornando-se o novo soberano do mundo. Um urro colossal varrera os Céus, como o estrondo tremendo de um infinito trovão, quando Urano fora atingido.
O fecundo Órgão do deus deposto, caindo do alto, mergulhara nas águas profundas, próximo a ilha de Chipre. Assim, Urano (Céu), depois de haver fecundado incessantemente Geia (Terra) — dando origem à estirpe dos deuses olímpicos —, fecundava agora, ainda que de maneira excêntrica e inesperada, o próprio Mar. Durante toda a noite o mar revolveu-se violentamente.
A espuma do mar, unida ao sangue do deus caído, subia ao alto em grandes ondas, como se Iançasse ao vento os seus leves e espumosos véus. Mas quando a Noite recolheu finalmente o seu grande manto estrelado, dando lugar a Eos, que já tingia o firmamento com seus dedos cor-de-rosa, percebeu-se que as águas daquele mar pareciam agora outras, completamente diferentes. O borbulhar imenso das ondas anunciava que algo estava prestes a surgir.
Das margens da ilha de Chipre, algumas ninfas, reunidas, apontavam, temerosas, para um trecho agitado do mar: O mar está prestes a parir algo! — disse uma delas. — Será algum monstro pavoroso? — disse outra, temerosa Mas nem bem o sol lançara sobre a patina azulada do mar Os seus primeiros raios, viu-se a espuma, que parecia subir das profundezas, cessar de borbulhar. Um grande silêncio pairou sobre tudo. — Sintam este perfume delicioso! Disse uma das ninfas. As outras, erguendo-se nas pontas dos pés, aspiraram a brisa fresca e olorosa que vinha do alto-mar. Nunca as flores daquela ilha haviam produzido um aroma tão penetrante e, ao mesmo tempo, tão discreto; tão doce e, ao mesmo tempo, tão provocantemente acre, tão natural e, ao mesmo tempo, tão sofisticado.
De repente, do espelho sereno das águas — nunca, ate então, o mar tivera aquela lisura perfeita de um grande lago adormecido — começou a elevar-se o corpo de alguém. — Vejam, é a cabeça de uma mulher! — gritou uma das ninfas. Sim, era uma bela cabeça — a mais bela cabeça feminina que a natureza pudera criar desde que o mundo abandonara a noite trevosa do Caos. Um rosto perfeito; Os traços eram arredondados onde a beleza exigia que se arredondassem, aquilinos onde a audácia pedia que se alinhassem e simétricos onde a harmonia exigia que se emparelhassem. O restante do corpo foi surgindo aos poucos: Os ombros lisos e simétricos, os seios perfeitos e idênticos — tão iguais que nem o mais consumado artista saberia dizer qual era o modelo e qual a sua replica perfeita. Sua cintura, com duas curvas perfeitas e fechadas, parecia talhada para realçar o umbigo perfeito, O qual acomodava delicadamente, como um encantador pingente, uma minúscula e faiscante pérola.
E, logo abaixo, um véu triangular — loiro e aveludado véu — tecido com os mais delicados e dourados fios, agitava-se delicadamente, esbatido pela brisa da manhã. Nenhum humano podia saber ainda o que ele ocultava — seu segredo mais cobiçado, que somente a poucos seria revelado. Algumas aves marinhas surgiram, arrastando uma grande concha, a qual depositaram ao lado da deusa — sim, era uma deusa —, para que ela, como em um trono, se assentasse. Um marulhar de peixes saltitantes a cercava, enquanto golfinhos puxavam seu elegante carro aquático até as areias da praia cipriota. Nem bem a deusa colocara os pé na ilha, e toda ela verdejou e coloriu-se como nunca antes havia sido.
Por onde ela passava, brotavam do próprio solo maços aromáticos de flores multicores, os pássaros todos entoavam um concerto de vozes perfeitamente harmoniosas e os animais quedavam-se sobre a relva com as cabeças pendidas, para receber o afago daquela mão alva e sedosa. — Quem é você, mulher mais que perfeita? — perguntou-lhe, finalmente, a ninfa que primeiro recuperara o dom da fala. — Sou aquela nascida da espuma do mar e do sêmen divino — respondeu a deusa, com uma voz cristalina e docemente áspera, envolta num hálito que superava em delícia ao de todas as flores que seus pés haviam feito brotar.
No mesmo dia, a extraordinária notícia do nascimento de criatura tão bela chegou ao Olimpo, e os deuses ordenaram que as Horas e as Graças a fossem recepcionar. Ainda mais enfeitada pelas mãos destas caprichosas divindades, apresentou-se a nova deusa diante de seus pares no grandioso salão do Olimpo, sendo imediatamente acolhida e festejada pelos deuses. Mas quando todos ainda se perguntavam quem seria, afinal, aquela criatura encantadora, um descuido — seria, mesmo? — pôs fim a todas as indagações. Pois o véu que a envolvia, descendo-Ihe ate os pés, revelara o que nenhum dos embelezamentos artificiais pudera antes realçar: a sua infinita beleza original. — É Afrodite, sim, a mais bela das deusas! — disse o coro unânime das vozes.
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